A Guerra Comercial dos EUA não é o que você pensa
A economia global integrada da era pós-Guerra Fria está se rompendo, dando lugar a um mundo mais fraturado

(Imagem: Leonardo AI/ Money Calls)
A guerra comercial entre Estados Unidos e China, frequentemente compreendida como uma política agressiva de tarifas impulsionada por Donald Trump, é, na verdade, apenas a superfície de uma mudança muito mais profunda na ordem econômica mundial. É o que aponta Neil Shearing, economista-chefe da Capital Economics, em um relatório publicado nesta segunda-feira (7) e obtido pelo Money Calls, intitulado “This trade war is the symptom – global fracturing is the cause”.
Segundo Shearing, o que estamos presenciando é o colapso da economia integrada que marcou a era pós-Guerra Fria, dando lugar a um mundo mais fragmentado, composto por blocos econômicos liderados por Estados Unidos e China, e forçando outras nações a escolherem um lado.
“A economia global integrada da era pós-Guerra Fria está se rompendo, dando lugar a um mundo mais fraturado de blocos econômicos concorrentes”, escreveu.
Fratura em vez de ruptura
Diferente de visões apocalípticas sobre o fim da globalização, o economista defende que estamos assistindo a uma reinvenção do processo globalizador, e não ao seu colapso. “Este não é o fim da globalização, mas sua reinvenção”, destacou Shearing. Nesse novo modelo, a competição entre superpotências molda o fluxo de capitais, decisões corporativas e políticas industriais com base em alinhamentos geopolíticos e não mais apenas em eficiência econômica.
Um exemplo claro dessa transformação é a decisão da Apple (AAPL) de transferir parte significativa da sua produção de iPhones da China para a Índia. A medida visa proteger a empresa dos efeitos das tarifas americanas sobre produtos chineses.
“A decisão da Apple de começar a transferir a produção de iPhones para a Índia, fora do alcance das tarifas americanas sobre a China, é talvez a ilustração mais proeminente de como as empresas estão se adaptando às novas realidades geopolíticas”, analisou Shearing.
Essa mudança evidencia que os fluxos comerciais globais não estão necessariamente encolhendo, mas mudando de direção. “Os fluxos comerciais não estão diminuindo — estão mudando”, disse ele, reforçando que essa reorganização é consequência direta da crescente tensão entre as duas maiores economias do mundo.
Dependência de recursos
O relatório também destaca o papel estratégico que recursos naturais, como os minerais raros, passaram a desempenhar nesse novo cenário. Com o governo de Pequim restringindo exportações desses insumos essenciais à produção de tecnologia, como semicondutores e baterias, Shearing observa que “o controle sobre minerais críticos tornou-se parte do arsenal estratégico de um país”.
Além disso, a política de investimentos do governo dos EUA — com forte foco no “America First” — tem como objetivo explícito atrair capital de países aliados, ao mesmo tempo em que impõe restrições ao investimento chinês. Isso vem redesenhando as redes globais de financiamento e indústria. “Começamos a enxergar os contornos de um mundo cada vez mais moldado pela geopolítica”, escreveu.
No curto prazo, as prioridades estão voltadas para qualquer coisa que comprometa a segurança das cadeias produtivas, a segurança nacional ou a liderança tecnológica. Porém, o rumo que isso tomará ainda é incerto. “Uma divisão econômica mais profunda e ampla entre os blocos ainda é possível”, alertou Shearing. “Alternativamente, é possível que os blocos não se sustentem.”
O papel das alianças
Nesse cenário de fratura global, os aliados dos Estados Unidos ganham ainda mais importância, sendo uma das maiores vantagens estratégicas do país. No entanto, Shearing aponta que a condução política de Trump pode minar essa força. “Um dos maiores riscos para a posição dos EUA é que Donald Trump afaste seus aliados, cujo tamanho e diversidade econômica são uma força crucial em um mundo fraturado.”
Para o economista, a pior ameaça seria uma escalada da rivalidade entre EUA e China, que poderia evoluir para um conflito direto. “Uma ameaça ainda mais séria para todos seria que uma rivalidade cada vez mais profunda leve os EUA e a China ao confronto.”
Ganhos e perdas
Apesar de os impactos econômicos de um mundo mais fragmentado serem amplamente negativos, alguns países e setores poderão se beneficiar dessa reorganização. A Índia, por exemplo, surge como um dos principais ganhadores com a realocação de cadeias produtivas. “Embora o mundo como um todo saia prejudicado com um sistema mais fraturado, haverá benefícios para alguns”, pontuou Shearing.
Para investidores, isso significa oportunidades — e riscos — em novos lugares. Os desafios se multiplicam para governos, empresas e gestores de recursos. Será necessário identificar setores e países que estão bem posicionados para aproveitar os novos fluxos comerciais, enquanto se preparam para uma economia global marcada por maior volatilidade nos preços das commodities e inflação mais instável.
Tendência subestimada
A fratura global, que há apenas alguns anos era vista como um risco remoto por instituições como o FMI, agora se torna um eixo central de análise.
“Três anos atrás, a fragmentação era considerada uma probabilidade de baixo risco em comparação com a continuidade da integração”, relembra Shearing. “A volta de Trump à Casa Branca — e sua compreensão do poder americano e de como utilizá-lo — colocou os holofotes sobre um processo até então amplamente negligenciado.”
Questões antes consideradas periféricas agora ocupam o centro do debate: seria possível o surgimento de um terceiro bloco europeu para contrabalançar EUA e China? Há espaço para um “Grande Acordo” entre as duas potências? Ou estamos apenas no começo de uma divisão mais disruptiva da ordem global?
Enquanto essas perguntas permanecem sem resposta, uma coisa parece clara: o mundo do comércio global não voltará ao que era antes.

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